Epigenética: fatores ambientais podem contribuir para hipertensão em populações afrodescendentes 2f6c2o

Análise com 80 indivíduos de remanescentes quilombolas indica mudanças na manifestação de genes associados à hipertensão “ativadas” a partir de fatores ambientais 6g3x5m
As populações afro-brasileiras são marcadas pela exclusão social e o limitado a serviços de saúde e outras políticas públicas. Esses fatores podem contribuir de maneira direta com a elevada prevalência de hipertensão, de acordo com estudo publicado na revista Epigenetics. Sub-representados em pesquisas, o artigo focou em populações de 12 quilombos da região do Vale do Ribeira para investigar a associação entre padrões epigenéticos de metilação do DNA e a ocorrência da hipertensão nessa população do Estado de São Paulo. Estudar características como essas em remanescentes de quilombos pode ajudar a reduzir vieses associados à heterogeneidade populacional. 5u3o59
A metilação de DNA é um tipo de alteração reversível do DNA que inibe a expressão dos genes. A epigenética estuda como esses genes são ativados ou desativados.
A identificação de genes que estejam associados à doença – e dessa diferença na expressão dos genes, esses padrões epigenéticos, em grupos com pressão arterial fora e dentro do padrão sadio – ajuda a entender a suscetibilidade hereditária e como o ambiente influencia na manifestação dessa doença cardiovascular. A análise envolveu 80 indivíduos, 41 hipertensos e 39 sem a doença, e revelou 190 posições (nucleotídeos) com metilação diferencial e 46 regiões (contendo de alguns até centenas de nucleotídeos) com metilação diferencial.
“Ter diferenças de metilação entre normotensos e os hipertensos sugere que quem tem hipertensão arterial, além de uma suscetibilidade hereditária, pode ter ado também por algum tipo de estresse do ambiente que favorece aumentar a pressão arterial”, traduz Camila Avila Martins, doutoranda no Instituto de Biociências (IB) da USP e autora do artigo. Das posições identificadas com essa diferença epigenética, 101 apresentaram mais metilação em indivíduos hipertensos, enquanto 89 apresentaram hipometilação em comparação com os indivíduos sadios.
A hipertensão arterial essencial (HE) é uma doença multifatorial que afeta 1,28 bilhão de pessoas em todo o mundo, além de ser um dos fatores de risco significativos para doenças cardiovasculares, insuficiência renal e morte prematura. O estudo mostrou que, nessa população, a epigenética pode desempenhar um papel crucial na regulação da pressão arterial.

“Um fator epigenético, como a metilação, equivale a colocar um adesivo sobre um código de barras, sem alterar a sequência do código, mas mudando a forma como é lido, resultando em uma interpretação diferente” – Camila Avila Martins.
Camila afirma ao Jornal da USP que foram identificadas “regiões específicas no genoma onde havia diferenças no nível de metilação do DNA, entre indivíduos hipertensos e não hipertensos. Esse processo pode afetar a expressão gênica, e essas diferenças podem estar relacionadas à hipertensão”. A condição clínica, definida pela elevação da pressão arterial em níveis maiores ou iguais a 140 mmHg (pressão arterial sistólica) ou 90 mmHg (pressão arterial diastólica), também foi investigada em pesquisas sobre epigenética com pessoas de descendência europeia, mas esses dados são pioneiros ao lidar com grupos sub-representados e miscigenados, como os quilombolas.
Desafios e metodologia complexa 5s5i3g
A avaliação clínica e a coleta de amostras ocorreram entre 2003 e 2010, com um pequeno conjunto de pessoas, que tiveram suas amostras de sangue coletadas novamente em 2019. Foi aplicado um questionário para obtenção do histórico médico e hábitos de saúde. Os dados clínicos coletados incluíram idade, altura, peso, IMC (Índice de Massa Corporal), circunferência média da cintura, circunferência média do quadril, relação cintura-quadril, pressão arterial sistólica (PAS) e diastólica (PAD) médias e nível de atividade física (NAF).
Houve cuidado para que a seleção desses indivíduos não reunisse pessoas com parentesco próximo, “um desafio” nas palavras da pesquisadora, devido à relação entre famílias dos moradores dos quilombos da região. Amostras de DNA foram extraídas e tratadas com bissulfito de sódio para a análise posterior da metilação. Todas as posições (DMPs) e regiões (DMRs) identificadas como diferencialmente metiladas entre indivíduos hipertensos e normotensos foram analisadas para investigar potenciais associações com o fenótipo de interesse.
Muitas tecnologias para análises baseadas em bioinformática foram utilizadas, com avaliação de cerca de 850 mil bases citosinas no DNA, nucleotídeo em que ocorre a metilação. A metilação nessa base pode aumentar ou diminuir o grau de enrolamento dos cromossomos e silenciar um gene.
Esse “adesivo” nas regiões identificadas pode estar relacionado a fases agudas de desnutrição na gestação ou na primeira infância, como alguns outros estudos recentes sugerem, conforme explica a doutoranda. Além dessa correlação entre ambiente e expressão genética, genes nunca antes correlacionados com a hipertensão são agora associados à origem da manifestação da doença.

Sobre um desses novos candidatos, ela explica que “o gene em questão estava inicialmente relacionado ao sistema nervoso. Ao interagir com outro gene conhecido por regular a pressão arterial via sistema nervoso, surgiu a hipótese de que essa interação poderia ser importante para entender a regulação da PA”. Além disso, a descoberta de 190 posições de bases citosinas e 46 regiões diferencialmente metiladas entre indivíduos hipertensos e normotensos revelou que as alterações epigenéticas não ocorrem de forma aleatória, mas seguem padrões específicos e funcionalmente relevantes.
Vínculos novos para responder perguntas antigas 5m252
Embora o estudo tenha uma amostra relativamente pequena e se concentre em uma região específica do Estado de São Paulo, ele oferece boas evidências de que o epigenoma é um mediador-chave entre o ambiente e a saúde cardiovascular. Além disso, o contato e o trabalho com as comunidades quilombolas vêm criando vínculos entre essa população e a comunidade científica. Essa aproximação permite voltar para perguntas antigas com novas soluções baseadas em tecnologias mais recentes. Essas respostas científicas têm grande impacto na vida dessas pessoas, conforme conta Regina Mingroni Netto, orientadora da pesquisa e professora do IB, que investiga essas comunidades há mais de 25 anos.
“Ao estudar a população, novas descobertas foram feitas e novos objetivos surgiram. Com isso, novas análises genéticas complexas foram desenvolvidas, incluindo tecnologias sofisticadas de mapeamento genético”, conta Regina. Sobre este último, ela conta que pensava que a saúde era o principal foco das populações participantes, mas foram as questões de ancestralidade que se mostraram muito interessantes.
Estudos com populações sub-representadas têm essa característica de revelar dados ainda pouco explorados, mas de grande valor, como sugere a professora ao falar que os quilombolas “se conectaram com a história e identidade de suas ancestralidades africanas e indígenas”.

Análises genéticas anteriores do grupo revelaram ancestralidade indígena e africana materna com influência de pais europeus, ”refletindo a história da colonização do Brasil”, como diz a orientadora. Ainda, essas informações e as trazidas por esse artigo só são possíveis com o avanço das tecnologias de bioinformática. “Nós coletamos DNA desde 2000, mas na época não tínhamos as ferramentas genômicas avançadas, o que explica por que estamos fazendo agora análises com o material coletado há quase 20 anos”, declara .
“Estamos um pouco repaginando as pesquisas, porque temos hoje o a metodologias de estudo genômico muito completas.” – Regina Mingroni Netto
Essa experiência também tem papel importante na formação daqueles que am pelos quilombos ou residem neles. Tanto a professora quanto a doutoranda afirmam que a experiência com as comunidades é impactante pela forma acolhedora como foram recebidos. Com muitas viagens a campo de dois a três dias nas comunidades quilombolas, os encontros são experiências de aprendizados para os dois lados: de um, os conhecimentos tradicionais e, do outro, o conhecimento acadêmico. “Reuniões com a comunidade abordaram temas de saúde básicos, como doenças parasitárias, e essas questões genéticas. Geram interação, perguntas interessantes e engajamento na comunidade”, diz Regina.
O artigo completo pode ser ado clicando aqui.
Uma série em vídeo do Centro de Estudos do Genoma Humano da USP explica em mais detalhes como funciona a epigenética.
Mais informações: [email protected], com Camila Avila Martins; [email protected], com Regina Mingroni Netto
* Estagiário com orientação de Tabita Said